REFLEXÕES DESPRETENCIOSAS SOBRE IDENTIDADE
Desde o
advento da modernidade, entendida como um fenómeno pós-revolução industrial,
busca-se a preservação de um passado cultural que possa servir como elemento
primordial para a manutenção dos referenciais sociais. Já, a partir do século
XX, sob o manto das discussões atualizadas da antropologia e sociologia, fundadas
na oposição ideológica capital-trabalho, a ideia de referencial social ganha
uma nova conotação. Sob a emergência da conceituação de subalternidade e do
reconhecimento da existência de um sujeito histórico sociocultural dessa
subalternidade, ganha dimensão transcontinental o discurso da (re)construção
identitária, em um explícito confronto ideológico com a versão oficial da
história dos vencedores, homogeneizadora e silenciadora das histórias dos
vencidos. A ideologia do poder versus
a ideologia do ser.
Ideologia e História
A palavra ideologia possui uma vasta gama de
significados muito diferentes entre si e que dependem do contexto onde se
insere. Para Eagleton, é “um texto, tecido com uma trama inteira de diferentes
fios conceituais”; para a sociologia, se relaciona com a legitimação de poder
de uma classe; e para Habermas, é uma comunicação sistematicamente distorcida.
Contudo, como salienta o mesmo autor, se não tivéssemos nenhum tipo de
pré-entendimento, “nem sequer seríamos capazes de identificar uma questão ou
situação, muito menos de emitir qualquer juízo sobre ela” (apud EAGLETON, 1977: 15-17). Portanto, a ideologia é um termo
fundamental para a organização social e para as decisões individuais, lastros
da construção da narrativa histórica.
Para
Jameson, a História não é o texto, mas existe através da mediação dele. Isso ocorre
porque registrar os fatos é um ato
socialmente simbólico, pois pressupõe interpretá-los (pensar o concreto
que representa a realidade) e, por isso, carrega marcas do período histórico no qual
foi escrito (por isso mesmo não pode ser analisado sem levá-lo em consideração)
e de uma apreensão parcial da realidade (pois não se consegue abranger a
totalidade), baseada em conceitos e ideologias inerentes ao autor. Essa
percepção de mundo não pode ser considerada verdadeira ou falsa, apenas pessoal.
Dessa forma:
“(...)
a história não fala por si mesma. Não há nenhuma “voz do passado”. Só
podemos ter esperança de resgatar representações específicas. (...) nós fazemos
histórias – com todas as paixões políticas, emoções, fidelidades do historiador
individual ainda presentes (SCHWARZ, 1992: 71).
A
História engloba dois fatores fundamentais: os feitos dos grandes homens e as
cidades, numa narrativa onde o indivíduo tornou-se central e tem-se a impressão
(fundamentada na causalidade mecânica) de que “cada época precisava ter a
memória de todas as outras para superá-la e realizar a tarefa do presente.
(...) [Ou seja, de] que o presente só é inteligível à luz do passado que
suprimiu” (CHAUÍ, 1992: 43). Assim a História
parece ter a função de entender o passado como essencial ao presente, que
pretende supera-lo através da sua compreensão.
A própria existência social (ao tomar consciência de
si mesma) se vê como uma construção histórica (modo de vida e de pensamento),
que só pode ser modificada com a criação de outra construção histórica, criada através
do distanciamento e do estranhamento, em uma análise não superficial dos fatos.
E cada nova construção histórica gera (e é gerada por) movimentos de rejeição
ou de ratificação à antiga, que geralmente se baseiam em uma visão errada dos
períodos históricos como grandes massas homogêneas, ignorando a existência, em
todas as eras, de “formas ‘residuais’ e ‘emergentes’ de produção cultural”
(JAMESON, 2000: 31).
Na
medida em que esse distanciamento com o passado ocorre, estabelece-se uma
perspectiva de afastamento e diferença, de alteridade entre o agora e o antes,
que servirá de fonte para as rememorações e as construções de símbolos que serão
os condutores da nova narrativa histórica. Essa perspectiva de ruptura entre
passado e presente gera a noção de tempo histórico e faz com que se busque no
passado as referências devidas para a construção de uma linha do tempo, a fim
de estabelecer uma continuidade temporal, que vem do passado e culmina no
presente, de modo a conceder um sentido para o presente.
Dessa
forma, busca-se, nas fissuras do passado, a construção de uma história, ou
melhor, uma narrativa histórica que dê conta de fazer compreender o mundo
caótico e mutante em que vivemos. Mas, infelizmente, como uma produção voluntária
do passado, essa narrativa (ou memória) histórica diz respeito somente aos vencedores,
como afirma Walter Benjamin, pois pauta-se em escolhas que referenciam e atestam
uma história de grandes feitos e de grandes heróis, que
é aquela registrada em documentos, a que se faz referência nas escolas, ou
seja, a chamada história oficial, cujo propósito é construir uma nacionalidade.
Assim, de caráter puramente ideológico, a memória histórica tem como finalidade
formar uma memória identitária entre todos os cidadãos e a nação, para que eles
se reconheçam como pertencentes a ela - a história oficial.
Essa
consagração de um discurso histórico, representativo do Estado, dissolveu contradições
reais e retirou seu significado dentro da luta social, pois “a possibilidade de
construção fechada de uma versão unívoca do passado repousa no poder de decidir
sobre o que será ou não preservado enquanto registro à disposição da posteridade”
(SILVA, 1992: 18), e ao povo não foi dado o direito de representar a si próprio
no âmbito da historiografia.
Se
ao longo do tempo, e de forma muito acelerada nas últimas décadas, o domínio
técnico contribui para ampliar os suportes da memória e torná-los cada vez mais
acessíveis a diferentes grupos sociais (a película cinematográfica, o vídeo, os
gravadores, as câmaras populares de fotografia, o disco, etc, etc), os
registros da diversidade das experiências sociais e dos valores culturais
tornam mais premente a necessidade de questionar os critérios que definem quais
são as fontes e formas mais abrangentes para tentar dar conta da multiplicidade
de vivências e lutas, que se engendram sem cessar em toda e qualquer formação
social (LOUZADA, 1992: 15).
Assim,
a preservação seletiva é uma forma de mediação da ideologia erudita dominante.
Ou seja, através da escolha de determinadas histórias, os governantes e os agentes
intelectuais a serviço da ideologia do poder, compartimentaram a realidade de
forma a indicar para a população que aquele era o discurso representativo do
grupo. Dessa forma, a maioria da
população ficou desprovida de uma memória coletiva (e de uma história) onde
pudesse se reconhecer, pois suas realizações ou não foram consideradas cultura,
ou suas vozes foram deliberadamente silenciadas a serviço da manutenção da
relação dominador-dominado.
Entretanto,
um período histórico não pode ser reduzido a denominadores comuns esquecendo-se
da multiplicidade das tradições populares e de suas experiências. Portanto, a
população leiga possui sua ideologia, e se apropria de um discurso que é
representativo de sua história e de suas convenções, não necessariamente a
mesma dos eruditos.
Levando
em consideração a afirmação de Gramsci de que “todos somos intelectuais, de que
todos possuímos os meios para sistematizar nossas ideias e descobrir de que
modo somos feitos como indivíduos históricos” (apud SCHWARZ,1992, p.70), percebemos a importância da cultura
popular para a sociedade e a sua (re)construção identitária. Vários segmentos
sociais ditos leigos reivindicam suas demandas em relação à memória e indicam
seus espaços representativos, embora nem sempre sejam reconhecidos, pois ainda
se exige o aval oficial - político e técnico. Por isso,
as
relações que se estabelecem entre as duas partes são sempre marcadas pela
tensão entre a historicidade buscada nas tradições que conferem identidade a
esses grupos e a concepção generalizada que atribui aos especialistas a
condição de exclusividade na competência para falar e executar pelos “leigos” (SILVA,
1992, p.17).
Portanto,
a luta de classes de Marx pode ser visualizada dentro da área da (re)construção
identitária: de um lado os discursos oficiais que buscam a concretização de uma
sociedade ideal e homogênea, e do outro, essa sociedade silenciada que afronta esse
discurso e expõe a sua heterogeneidade, que vive e valoriza a existência de uma
historicidade coletiva através da qual se identifica e se reconhece, seja “nas
narrativas da favelada negra, Carolina de Jesus, com Quarto de Despejo nos anos
60; ou então nos anos 90, quando as periferias tomam directamente a palavra com
a literatura (Paulo Lins, Ferrez, a literatura marginal) ou a música hip hop ou
rap”. (VECCHI, 2016: 201)
Para
Jameson, vivemos uma era na qual é preciso “entender nosso posicionamento como
sujeitos individuais e coletivos e recuperar nossa capacidade de agir e lutar,
que está, hoje, neutralizada pela nossa confusão espacial e social”. (2000, p:
79) O esmaecimento dos afetos, ou seja, a falta de profundidade nas relações
sociais, provoca a morte do sujeito, que deixa de ser um, para ser vários, ou
apenas mais um em meio a muitos. E esse desaparecimento do sujeito individual
produz a fragmentação da própria vida social que, por sua vez, culmina no
“enfraquecimento da historicidade tanto em nossas relações com a história
pública quanto em nossas novas formas de temporalidade privada” (JAMESON, 2000,
p: 32)
O retrato que Jameson nos
oferece da cultura pós-moderna, no qual se destacam, entre outras coisas, a
perda do sentido histórico, a rejeição de todo o tipo de transcendência e a
supressão das mediações, fortalece a percepção de que vivemos num mundo cuja
marca fundamental é a homogeneização (OLIVEIRA, 2010, p.1).
Considerações finais
Novos valores, costumes e
hábitos produzem uma identidade diferenciada e uma constante reificação do que
pode ser entendido como cultura. Neste sentido fica evidente que um contínuo
processo de mudanças desses valores, promove uma mudança postural da população
em relação ao seu património cultural, aceitando e destacando a diversidade de
sua composição e referencial identitário.
Seja como for, o subalterno
fala. A sua é uma história que, tal como escreve Gramsci nos Quaderni, se
coloca à margem da história, uma história, a dos grupos subalternos,
necessariamente desagregada e episódica (Gramsci, 1975: 2283). É nestes restos
resistentes que o murmúrio vivo e palpitante das subalternidades silenciadas
do(s) Atlântico(s) Sul ainda pode ser ouvido e interpretado criticamente. E
assim, pela sua Voz feita de vozes, as suas contra-histórias não-hegemónicas
podem começar a ser contadas. (VECCHI, 2016: 201)
Um aspecto importante destas considerações é a incitação a uma nova
perspectiva de pensar, que nos leva mais a perguntas do que a respostas, provocar
a reflexão para que a passividade causada pela era atual seja quebrada e nos
permitamos recusar modelos impostos, quer de “culturalismo reificante, quer o
reducionismo materialista”, é o (re)conhecimento e a aceitação do outro como
sujeito e não como adjetivo, resultado de um processo histórico e cultural.
(ALMEIDA, 2000: 162)
Nas
palavras de Manuel Rui Monteiro:
Só que agora porque o meu espaço e tempo foi
agredido para o defender por vezes dessituo do espaço e tempo o tempo mais
total. O mundo não sou eu só. O mundo somos nós e os outros. E quando a minha
literatura transborda a minha identidade é arma de luta e deve ser acção de
interferir no mundo total para que se conquiste então o mundo universal.
Escrever então é viver.
Escrever assim é lutar.
Literatura e identidade. Princípio e fim.
Transformador. Dinâmico. Nunca estático para além da defesa de mim me reconheça
sempre que sou eu a partir de nós também para a desalienação do outro até que
um dia e virá «os portos do mundo sejam os portos de todo o mundo».
Até lá não se espantem. É quase natural que eu
escreva também ódio por amor ao amor!
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