REFLEXÕES DESPRETENCIOSAS SOBRE IDENTIDADE

Autor: Ricardo Ali Abdalla.

 

Desde o advento da modernidade, entendida como um fenómeno pós-revolução industrial, busca-se a preservação de um passado cultural que possa servir como elemento primordial para a manutenção dos referenciais sociais. Já, a partir do século XX, sob o manto das discussões atualizadas da antropologia e sociologia, fundadas na oposição ideológica capital-trabalho, a ideia de referencial social ganha uma nova conotação. Sob a emergência da conceituação de subalternidade e do reconhecimento da existência de um sujeito histórico sociocultural dessa subalternidade, ganha dimensão transcontinental o discurso da (re)construção identitária, em um explícito confronto ideológico com a versão oficial da história dos vencedores, homogeneizadora e silenciadora das histórias dos vencidos. A ideologia do poder versus a ideologia do ser.

 

Ideologia e História

A palavra ideologia possui uma vasta gama de significados muito diferentes entre si e que dependem do contexto onde se insere. Para Eagleton, é “um texto, tecido com uma trama inteira de diferentes fios conceituais”; para a sociologia, se relaciona com a legitimação de poder de uma classe; e para Habermas, é uma comunicação sistematicamente distorcida. Contudo, como salienta o mesmo autor, se não tivéssemos nenhum tipo de pré-entendimento, “nem sequer seríamos capazes de identificar uma questão ou situação, muito menos de emitir qualquer juízo sobre ela” (apud EAGLETON, 1977: 15-17). Portanto, a ideologia é um termo fundamental para a organização social e para as decisões individuais, lastros da construção da narrativa histórica.

Para Jameson, a História não é o texto, mas existe através da mediação dele. Isso ocorre porque registrar os fatos é um ato socialmente simbólico, pois pressupõe interpretá-los (pensar o concreto que representa a realidade) e, por isso, carrega marcas do período histórico no qual foi escrito (por isso mesmo não pode ser analisado sem levá-lo em consideração) e de uma apreensão parcial da realidade (pois não se consegue abranger a totalidade), baseada em conceitos e ideologias inerentes ao autor. Essa percepção de mundo não pode ser considerada verdadeira ou falsa, apenas pessoal. Dessa forma:

“(...) a história não fala por si mesma. Não nenhuma “voz do passado”. Só podemos ter esperança de resgatar representações específicas. (...) nós fazemos histórias – com todas as paixões políticas, emoções, fidelidades do historiador individual ainda presentes (SCHWARZ, 1992: 71).

A História engloba dois fatores fundamentais: os feitos dos grandes homens e as cidades, numa narrativa onde o indivíduo tornou-se central e tem-se a impressão (fundamentada na causalidade mecânica) de que “cada época precisava ter a memória de todas as outras para superá-la e realizar a tarefa do presente. (...) [Ou seja, de] que o presente só é inteligível à luz do passado que suprimiu” (CHAUÍ, 1992: 43). Assim a História parece ter a função de entender o passado como essencial ao presente, que pretende supera-lo através da sua compreensão.

A própria existência social (ao tomar consciência de si mesma) se vê como uma construção histórica (modo de vida e de pensamento), que só pode ser modificada com a criação de outra construção histórica, criada através do distanciamento e do estranhamento, em uma análise não superficial dos fatos. E cada nova construção histórica gera (e é gerada por) movimentos de rejeição ou de ratificação à antiga, que geralmente se baseiam em uma visão errada dos períodos históricos como grandes massas homogêneas, ignorando a existência, em todas as eras, de “formas ‘residuais’ e ‘emergentes’ de produção cultural” (JAMESON, 2000: 31).

Na medida em que esse distanciamento com o passado ocorre, estabelece-se uma perspectiva de afastamento e diferença, de alteridade entre o agora e o antes, que servirá de fonte para as rememorações e as construções de símbolos que serão os condutores da nova narrativa histórica. Essa perspectiva de ruptura entre passado e presente gera a noção de tempo histórico e faz com que se busque no passado as referências devidas para a construção de uma linha do tempo, a fim de estabelecer uma continuidade temporal, que vem do passado e culmina no presente, de modo a conceder um sentido para o presente.

Dessa forma, busca-se, nas fissuras do passado, a construção de uma história, ou melhor, uma narrativa histórica que dê conta de fazer compreender o mundo caótico e mutante em que vivemos. Mas, infelizmente, como uma produção voluntária do passado, essa narrativa (ou memória) histórica diz respeito somente aos vencedores, como afirma Walter Benjamin, pois pauta-se em escolhas que referenciam e atestam uma história de grandes feitos e de grandes heróis, que é aquela registrada em documentos, a que se faz referência nas escolas, ou seja, a chamada história oficial, cujo propósito é construir uma nacionalidade. Assim, de caráter puramente ideológico, a memória histórica tem como finalidade formar uma memória identitária entre todos os cidadãos e a nação, para que eles se reconheçam como pertencentes a ela - a história oficial.

Essa consagração de um discurso histórico, representativo do Estado, dissolveu contradições reais e retirou seu significado dentro da luta social, pois “a possibilidade de construção fechada de uma versão unívoca do passado repousa no poder de decidir sobre o que será ou não preservado enquanto registro à disposição da posteridade” (SILVA, 1992: 18), e ao povo não foi dado o direito de representar a si próprio no âmbito da historiografia.

Se ao longo do tempo, e de forma muito acelerada nas últimas décadas, o domínio técnico contribui para ampliar os suportes da memória e torná-los cada vez mais acessíveis a diferentes grupos sociais (a película cinematográfica, o vídeo, os gravadores, as câmaras populares de fotografia, o disco, etc, etc), os registros da diversidade das experiências sociais e dos valores culturais tornam mais premente a necessidade de questionar os critérios que definem quais são as fontes e formas mais abrangentes para tentar dar conta da multiplicidade de vivências e lutas, que se engendram sem cessar em toda e qualquer formação social (LOUZADA, 1992: 15).

Assim, a preservação seletiva é uma forma de mediação da ideologia erudita dominante. Ou seja, através da escolha de determinadas histórias, os governantes e os agentes intelectuais a serviço da ideologia do poder, compartimentaram a realidade de forma a indicar para a população que aquele era o discurso representativo do grupo.  Dessa forma, a maioria da população ficou desprovida de uma memória coletiva (e de uma história) onde pudesse se reconhecer, pois suas realizações ou não foram consideradas cultura, ou suas vozes foram deliberadamente silenciadas a serviço da manutenção da relação dominador-dominado.

Entretanto, um período histórico não pode ser reduzido a denominadores comuns esquecendo-se da multiplicidade das tradições populares e de suas experiências. Portanto, a população leiga possui sua ideologia, e se apropria de um discurso que é representativo de sua história e de suas convenções, não necessariamente a mesma dos eruditos.

Levando em consideração a afirmação de Gramsci de que “todos somos intelectuais, de que todos possuímos os meios para sistematizar nossas ideias e descobrir de que modo somos feitos como indivíduos históricos” (apud SCHWARZ,1992, p.70), percebemos a importância da cultura popular para a sociedade e a sua (re)construção identitária. Vários segmentos sociais ditos leigos reivindicam suas demandas em relação à memória e indicam seus espaços representativos, embora nem sempre sejam reconhecidos, pois ainda se exige o aval oficial - político e técnico. Por isso,

as relações que se estabelecem entre as duas partes são sempre marcadas pela tensão entre a historicidade buscada nas tradições que conferem identidade a esses grupos e a concepção generalizada que atribui aos especialistas a condição de exclusividade na competência para falar e executar pelos “leigos” (SILVA, 1992, p.17).

Portanto, a luta de classes de Marx pode ser visualizada dentro da área da (re)construção identitária: de um lado os discursos oficiais que buscam a concretização de uma sociedade ideal e homogênea, e do outro, essa sociedade silenciada que afronta esse discurso e expõe a sua heterogeneidade, que vive e valoriza a existência de uma historicidade coletiva através da qual se identifica e se reconhece, seja “nas narrativas da favelada negra, Carolina de Jesus, com Quarto de Despejo nos anos 60; ou então nos anos 90, quando as periferias tomam directamente a palavra com a literatura (Paulo Lins, Ferrez, a literatura marginal) ou a música hip hop ou rap”. (VECCHI, 2016: 201)

Para Jameson, vivemos uma era na qual é preciso “entender nosso posicionamento como sujeitos individuais e coletivos e recuperar nossa capacidade de agir e lutar, que está, hoje, neutralizada pela nossa confusão espacial e social”. (2000, p: 79) O esmaecimento dos afetos, ou seja, a falta de profundidade nas relações sociais, provoca a morte do sujeito, que deixa de ser um, para ser vários, ou apenas mais um em meio a muitos. E esse desaparecimento do sujeito individual produz a fragmentação da própria vida social que, por sua vez, culmina no “enfraquecimento da historicidade tanto em nossas relações com a história pública quanto em nossas novas formas de temporalidade privada” (JAMESON, 2000, p: 32)

O retrato que Jameson nos oferece da cultura pós-moderna, no qual se destacam, entre outras coisas, a perda do sentido histórico, a rejeição de todo o tipo de transcendência e a supressão das mediações, fortalece a percepção de que vivemos num mundo cuja marca fundamental é a homogeneização (OLIVEIRA, 2010, p.1).

 

Considerações finais

Novos valores, costumes e hábitos produzem uma identidade diferenciada e uma constante reificação do que pode ser entendido como cultura. Neste sentido fica evidente que um contínuo processo de mudanças desses valores, promove uma mudança postural da população em relação ao seu património cultural, aceitando e destacando a diversidade de sua composição e referencial identitário.

Seja como for, o subalterno fala. A sua é uma história que, tal como escreve Gramsci nos Quaderni, se coloca à margem da história, uma história, a dos grupos subalternos, necessariamente desagregada e episódica (Gramsci, 1975: 2283). É nestes restos resistentes que o murmúrio vivo e palpitante das subalternidades silenciadas do(s) Atlântico(s) Sul ainda pode ser ouvido e interpretado criticamente. E assim, pela sua Voz feita de vozes, as suas contra-histórias não-hegemónicas podem começar a ser contadas. (VECCHI, 2016: 201)

Um aspecto importante destas considerações é a incitação a uma nova perspectiva de pensar, que nos leva mais a perguntas do que a respostas, provocar a reflexão para que a passividade causada pela era atual seja quebrada e nos permitamos recusar modelos impostos, quer de “culturalismo reificante, quer o reducionismo materialista”, é o (re)conhecimento e a aceitação do outro como sujeito e não como adjetivo, resultado de um processo histórico e cultural. (ALMEIDA, 2000: 162)

Nas palavras de Manuel Rui Monteiro:

 

Só que agora porque o meu espaço e tempo foi agredido para o defender por vezes dessituo do espaço e tempo o tempo mais total. O mundo não sou eu só. O mundo somos nós e os outros. E quando a minha literatura transborda a minha identidade é arma de luta e deve ser acção de interferir no mundo total para que se conquiste então o mundo universal.

 

Escrever então é viver.

Escrever assim é lutar.

 

Literatura e identidade. Princípio e fim. Transformador. Dinâmico. Nunca estático para além da defesa de mim me reconheça sempre que sou eu a partir de nós também para a desalienação do outro até que um dia e virá «os portos do mundo sejam os portos de todo o mundo».

Até lá não se espantem. É quase natural que eu escreva também ódio por amor ao amor!

 

 

Referências

 

ALMEIDA, Miguel Vale de. Tristes Luso-trópicos. Raizes e ramificações dos discursos luso-tropicalistas In: Um mar da cor da terra: raça, cultura e política da identidade. Oeiras : Celta Editora, 2000.

CHAUÍ, M. Política cultural, cultura política e patrimônio histórico. In: O direito à memória: Patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: O Departamento, 1992. Pp.37-46.

EAGLETON, T. O que é ideologia? In: ZIZEK, S. Ideologia: Uma introdução. São Paulo: Editora da Unesp/Boitempo, 1977.

JAMESON, F. A lógica do capitalismo tardio. In: Pós-modernismo: A lógica do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2000.

JAMESON, F. O modernismo como ideologia. In: Modernidade singular. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

LUCHIARI, Maria Tereza Paes. Patrimônio, Natureza e Cultura. Campinas-SP, Papirus, 2007

LOUZADA, N. M. Diferentes suportes para a memória. In: O direito à memória: Patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: O Departamento, 1992. Pp.13-16.

MAGALDI, C. O público e o privado: propriedade e interesse cultural. In: O direito à memória: Patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: O Departamento, 1992. Pp.21-24.

MONTEIRO, Manuel Rui. Eu e o Outro - O invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto.  In: Lendo Angola. Porto. Edições Afrontamento: 2008

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SCHWARZ, B. Patrimônio histórico e cidadania: a experiência inglesa. In: O direito à memória: Patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: O Departamento, 1992. Pp.67-79.

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